Por Gustavo Seabra, ao site JOTA.

Diante da crise fiscal causada pela pandemia, alguns entes federativos vêm pretendendo implementar descontos para pagamento antecipado de IPTU do exercício financeiro de 2021, de modo a reforçar o caixa nesses últimos meses do presente ano de 2020. Sem a pretensão de enfrentar a questão sob o ponto de vista político – tarefa mais afeta a analistas dessa área –, deve-se analisá-la à luz de possível configuração de operação de antecipação de receita orçamentária (ARO).

Dispunha a minuta de Decreto analisada por esse subscritor, que o IPTU das “INDÚSTRIAS” poderia ser quitado em cota única, com desconto de 18%, até 18 de dezembro do presente ano de 2020, o que induziu a percepção de que os recursos orçamentários previstos para o exercício subsequente poderiam ingressar no tesouro municipal no presente ano de 2020.

Debruçando-nos sobre a questão destacamos que as operações de crédito dos entes públicos dividem-se, com base na Lei nº 4.320/1964, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na Resolução do Senado Federal n° 43/2001 (RSN 43/01), em operações que integram a dívida flutuante, como por exemplo as operações por Antecipação de Receita Orçamentária (ARO), e operações que compõem a dívida fundada ou consolidada (operações de crédito “padrão”).

A denominada ARO vem disciplinada no art. 38, da LRF, e tem por objetivo atender à insuficiência de caixa durante o exercício financeiro, cuja regulamentação e limites são encontrados nas normas que tratam das operações de crédito em geral, dispostas a partir do art. 32, da LRF, e na citada RSN 43/01[1].

Identificamos que se trata de modalidade de operação de crédito, portanto, que compõe a dívida flutuante, de curto prazo, dependente de autorização legislativa para seu resgate, na LOA ou em lei especial (art. 165, § 8º, CF) e, dentre outras características, tem o objetivo específico de atender à insuficiência de caixa (tesouraria) do ente federativo durante o exercício.

A ARO é modalidade de operação de crédito que consiste, como a própria nomenclatura expressa, em operação financeira que viabiliza a antecipação de receita orçamentária futura – a realizar e, portanto, estimada –, mediante a captação presente de recursos para posterior pagamento com juros à instituição financeira ofertante[2], configurando, em regra, modalidade de contrato de mútuo feneratício (empréstimo de dinheiro), cujo montante financeiro é limitado à receita orçamentária prevista para o exercício.

A marca essencial da ARO, que a distingue dos descontos no pagamento de tributos, diz respeito primeiro, à contratualidade da operação e, segundo, à necessidade de devolução dos recursos captados no mercado, acrescido de juros remuneratórios.

Como se verifica, enquanto na ARO, típica operação de crédito, há um empréstimo público, com endividamento do ente federativo, na concessão de desconto no pagamento de tributos há a redução do ingresso dos recursos orçamentários estimados na LOA, sem a imposição de sua devolução futura, haja vista que não se tratar propriamente de operação de financiamento. Temos, assim, que a ARO está inserida na categoria de crédito público, e o desconto por pagamento antecipado, na categoria da receita.

Pois bem, operação de crédito é conceituada pela LRF, em seu art. 29, III, como “compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros”.

Tem-se, nesse tipo de operação, por suas múltiplas modalidades, uma forma de endividamento do ente federativo, eis que capta recursos no mercado de crédito (subsistema do sistema financeiro) com a promessa de devolução em momento futuro, com a incidência de juros, assim como a aquisição de bens financiados ou recebimentos de recursos antecipadamente.

Entretanto, não obstante o desconto de tributos não se enquadrar no conceito legal de operação de crédito, segundo nosso juízo, a norma a equipara para efeitos financeiros a fim de vedar sua realização.

A equiparação legal decorre do fato de que o ente federativo não terá que realizar o pagamento futuro pelo valor recebido no presente, mas, por outro lado, estará a se utilizar de recursos presentes que somente seriam eventualmente arrecadados futuramente.

Na captação de recursos decorrentes de antecipação de receita de tributos, não haverá a contrapartida de devolução com juros futuramente, faltando, assim, as figuras do financiado e do financiador, característicos das operações de créditos. Não se ignora que os recursos captados antecipadamente estarão a financiar as despesas correntes do ente federativo, mas nos parece que esse elemento isoladamente não seja suficiente a caracterizar uma operação de crédito, que exige uma contrapartida financeira futura do ente federativo.

Não é por outra razão que o art. 37, I, da LRF, veda a “captação de recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido”, na medida em que tal procedimento importaria o recebimento atual de recursos por créditos futuros. Há, nesse caso, antecipação de receita orçamentária futura, por fato gerador hipotético, embora não se enquadre exatamente no conceito legal de operação de crédito.

Além dos pontos levantados, é pertinente destacar que a receita tributária do exercício subsequente pertence àquele exercício, de modo que o ingresso dos recursos no atual exercício induziria a necessidade de categorizá-los como receita extraorçamentária em hipótese vedada pela LRF (art. 37, I). Ademais, tal procedimento compromete os Princípios da Anualidade e do Equilíbrio Orçamentário.

Agregue-se, outrossim, que o desconto pretendido pelos entes municipais impactaria indevidamente na estimava de receita constante da LOA do exercício de 2021, e usualmente não consta dos autos dos processos sequer justificativa a embasar o pretendido procedimento, nem mesmo informação no projeto de LOA que a estimativa de receita considerou a antecipação de pagamento de IPTU do exercício anterior, o que sem dúvida compromete a adequada estimativa de receita, a capacidade de pagamento das despesas fixadas e o equilíbrio orçamentário.

Em suma, a impossibilidade da operação pretendida decorre, além de texto expresso de lei, do Princípio Democrático, como bem explica MARCOS JURUENA VILLELA SOUTO[3] que, embora se refira a questão sob perspectiva da despesa, se aplica perfeitamente sob a ótica da receita.

Por fim, mas não menos importante, chama-se a atenção para o que dispõe o Decreto-lei nº 201/67, que dispõe que “são crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais (…) XXI – captar recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido”.

Desta forma, nos parece que a antecipação de pagamento de IPTU com desconto em diferentes exercícios não é propriamente uma operação de crédito, na forma conceitual disposta no art. 29, III, da LRF, mas a ela se equipara pelo comando do art. 37, I, também da LRF e, assim, está vedada.

 

[1] Art. 3º Constitui operação de crédito, para os efeitos desta Resolução, os compromissos assumidos com credores situados no País ou no exterior, em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.

[2] Mediante escolha em processo competitivo promovido pelo Banco Central do Brasil, como dispõe a LRF no art. 38, § 2o: “As operações de crédito por antecipação de receita realizadas por Estados ou Municípios serão efetuadas mediante abertura de crédito junto à instituição financeira vencedora em processo competitivo eletrônico promovido pelo Banco Central do Brasil”.

[3] “Parece razoável que, quando a sociedade elege um determinado projeto político, as despesas para a sua realização devem ser contidas dentro desse mandato político sufragado pela sociedade, de modo que, em sendo posteriormente sufragada uma outra orientação política, almejando um outro projeto, o orçamento do sucessor não fique comprometido com dívidas relativas ao projeto anterior, já superado ou rejeitado pela sociedade. Enfim, a lógica do planejamento é voltada também ao atendimento do princípio democrático.” (SOUTO, Marcos Juruena Villela, in Lei de Responsabilidade Fiscal e Encerramento de Mandato – Direito Administrativo em Debate; 2ª série. Lumen Juris. 2007, p. 266) “A idéia é o gasto planejado dentro do mandato político. A lógica é que, à luz do princípio democrático, o sucessor não tem que herdar vícios, dívidas e projetos já superados, o que sequer deveria ser objeto de positivação, posto que deveria decorrer de uma lógica de respeito aos próprios princípios constitucionais.” (Ob. cit., p. 267)

 

Confira em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desconto-de-iptu-futuro-para-arrecadacao-presente-19112020

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